sexta-feira, 31 de julho de 2015

O Grande “Duty Free”

Essa matéria foi pública há dois anos, mas é muito atual, onde o contrabando no Brasil é um problema crônico, e sem controle, considerado um CRIME SEM CASTIGO.
Guaíra descansa às margens do parcimonioso rio Paraná, que desenha uma fronteira natural entre Brasil e Paraguai. Aqui, a terra é vermelha e a paisagem, plana, com amplas plantações de soja e erva-mate. À primeira vista, Guaíra é uma prolixa cidade de 30.000 almas, no oeste do Brasil. As pessoas conversam sentadas em praças e cabeleireiros. As ruas do centro estão limpas, as casas recém-pintadas e os telefones públicos têm desenhos tropicais – podem-se fazer chamadas dentro do intestino de um peixe ou do peito de um papagaio.
Sob essa superfície, a cidade vive uma realidade diferente.
No último setembro (2008), Guaíra roubou as manchetes dos diários do Brasil quando 15 pessoas foram assassinadas a tiros em uma casa próxima à ribeira. As mortes, produto de uma briga entre traficantes de drogas, não foram incomuns. Localizada a 250 quilômetros da Tríplice Fronteira, onde convergem Brasil, Paraguai e Argentina, Guaíra é hoje um agitado e violento corredor regional de drogas e armas. Contudo, nenhum outro produto é mais contrabandeado nesta cidade, e é melhor negócio para os contrabandistas, que os cigarros paraguaios.
Dezenas de lanchas abarrotadas de cigarros cruzam diariamente o rio Paraná a partir da vizinha cidade de Salto del Guairá, no Paraguai. Os contrabandistas injetam milhões de cigarros em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras, onde o cigarro paraguaio, barato e livre de impostos, apropriou-se de 20 por cento de todo o mercado. Guairá está no coração do negócio, um portal estratégico e um local onde muitos de seus habitantes – metade da população, segundo alguns residentes – depende direta ou indiretamente do contrabando para a sua subsistência. Alguns ganham milhões no mercado negro. O contrabandista mais famoso de Guairá, Roque Fabiano Silveira, fez fortuna e nome contrabandeando cigarros paraguaios além das fronteiras.
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Roque Silveira
Silveira, de 44 anos, apelidado de Zero Um (O Chefe), fugiu ao Paraguai logo após ter sido acusado de orquestrar o assassinato de um empresário de Guairá, em 1996. No Paraguai, seu negócio decolou e, em 1999, Silveira montou sua própria fábrica de cigarros, nos arredores de Assunção. A tabacaria logo se converteu na base de operações de uma rede de contrabando, que abarcou dois continentes e tocou fundo nos Estados Unidos. A partir de 2003, Silveira se associou com comerciantes de cigarros do Arizona e das reservas indígenas do estado de Washington para contrabandear milhões de cigarros paraguaios através dos portos de Miami, Norfolk e Baltimore. Os maços eram distribuídos em várias cidades do país, e o dinheiro era “lavado” em contas bancárias do Paraguai e dos Estados Unidos. Silveira não só fabricava cigarros, dizem os fiscais estadunidenses do caso, mas também estabelecia contatos na América do Sul para garantir o encaminhamento dos carregamentos em direção ao norte. Seus ex-sócios dizem que era astuto e frio, com certa debilidade pelos trajes finos.
A história de Roque Silveira é emblemática da natureza e do alcance da crescente indústria tabagista paraguaia. Peritos, investigadores e funcionários de aduanas asseguram que se trata de uma indústria concebida e dedicada, quase em sua totalidade, ao contrabando internacional. Quinze anos atrás, a produção de cigarros era mínima no Paraguai, um dos países mais pobres da América do Sul, famoso por sua corrupção endêmica e comércio de produtos falsificados. Hoje, o Paraguai figura entre os principais países produtores de cigarros de contrabando, responsável por 10 por cento de todos os cigarros que são vendidos no mercado negro a nível mundial, dizem os especialistas.
Os números contam a história. Em 2006, as fábricas paraguaias fabricaram 68 bilhões de cigarros, mais de 20 vezes o que consome o mercado local, de acordo com um estudo do Centro de Investigação da Epidemia do Tabagismo (CIET), uma ONG no Uruguai que analisa o mercado do tabaco na região. A grande maioria da produção – 90 por cento dos cigarros avaliados em um bilhão de dólares anuais – desaparece no mercado negro, dizem as autoridades. Os cigarros paraguaios hoje inundam Brasil e Argentina, onde os impostos ao tabaco são muito mais altos que no Paraguai, e têm sido confiscados também no outro lado do Atlântico, em países como a Irlanda.
FIDEL, HAMLET E OPUS DEI
Enquanto no passado as indústrias de tabaco multinacionais tiveram o monopólio do contrabando de cigarros no mundo, hoje o comércio ilegal involucra uma grande diversidade de grupos criminosos que roubam dos governos dinheiro de impostos, alimentam o crime organizado e multiplicam o vício ao tabaco. O crescimento exponencial da indústria tabagista paraguaia alarma por igual as autoridades de saúde, de aduanas e a polícia, que temem que o Paraguai se converta no próximo pesadelo no tráfico mundial de cigarros. Fontes da indústria tabagista internacional dizem que hoje é mais barato fabricar cigarros no Paraguai do que na China – o líder mundial do contrabando de cigarros – enquanto que a qualidade é muito superior.
“Existe um perigo real de que a situação no Paraguai escale rapidamente”, diz Austin Rowan, diretor de operações anticontrabando do escritório antifraude da União Europeia. O que distingue o Paraguai, dizem as autoridades, é a grande quantidade de marcas que são produzidas em suas fábricas – mais de 2.600 foram registradas no Ministério de Indústria e Comércio, incluindo “Dirty”, “Fidel”, “Hamlet” e “Opus Dei” – o que complica ainda mais a tarefa de quem investiga o contrabando. Em contraste, somente um punhado de marcas é vendido no mercado nacional, onde os fumantes pagam um dos impostos ao tabaco mais baixos do mundo.
“O negócio principal destas empresas é o ilegal. Ponto”, diz Alejandro Ramos, do CIET. “É um problema regional, não só paraguaio”.
As companhias tabagistas multinacionais observam com não pouca ansiedade a velocidade com que os paraguaios têm criado uma indústria às margens da legalidade. Investigadores das multinacionais dizem que os cigarros paraguaios são enviados a conhecidos destinos de triangulação, como Aruba e Panamá, onde os carregamentos presumidamente entram no mercado negro. Em 2006, a aduana da Irlanda apreendeu um container carregado com 5 milhões de cigarros paraguaios escondidos entre madeiras. Enquanto David Godwin, funcionário aduaneiro, investigava o caso, um de seus colegas da União Europeia lhe disse: “Se você pensa que tem problemas com a China, o Oriente Médio e o resto, prepare-se, porque você não viu nada… a capacidade de produção na América do Sul é infinita”.
As produtoras de tabaco no Paraguai vão desde modernas plantas industriais com tecnologia de ponta alemã a ocasionais fábricas miniaturas – também chamadas de submarinos – que são montadas dentro de caminhões. Funcionários do governo paraguaio dizem que, se todas as máquinas do país trabalhassem em rendimento máximo, o país poderia produzir uns 100 bilhões de cigarros anuais – o suficiente para abastecer quase dois terços do mercado brasileiro.
O contrabando flui facilmente no Paraguai, admitem os funcionários. A indústria tabagista praticamente não é controlada, e os fabricantes ilegais e os contrabandistas frequentemente são protegidos pelo poder em vigor. Banqueiros, políticos e até mesmo donos de clubes de futebol estão envolvidos no negócio, e fazem generosas contribuições em tempo de campanha. E, ainda que a administração de Fernando Lugo – um ex-bispo católico que, no ano passado, derrotou o Partido Colorado depois de mais de 60 anos no poder – prometeu mudar a reputação do país, já houve alguns tropeços. Em fevereiro, o presidente nomeou como chefe de inteligência das Forças Aéreas um militar condenado por contrabandear cigarros à Argentina (em meio a intensas críticas, Lugo voltou atrás com a nomeação).
PARAÍSO DE CONTRABANDISTAS
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O cigarro é mais um produto que se compra e vende na economia informal do Paraguai, que floresceu durante os 35 anos de ditadura de Alfredo Stroessner. Até sua queda em um golpe de estado em 1989, Stroessner fez do país um refúgio para criminosos de guerra nazistas, ditadores depostos e contrabandistas.
A Tríplice Fronteira de Paraguai, Brasil e Argentina é o epicentro desta cultura de contrabando. Um corredor de drogas, armas, veículos roubados e qualquer falsificação que se pode imaginar – desde CDs até Viagra –, esta região de espessa vegetação e especulares quedas d’água se converteu no perfeito cenário para o comércio ilícito de cigarros paraguaios.
“A única coisa que floresce aqui é a ilegalidade”, diz Humberto Rosetti, fiscal de Ciudad del Este, o nó comercial da Tríplice Fronteira. O centro da cidade é um animado labirinto de ruas estreitas abarrotadas de barraquinhas, casas de câmbio e lojas, onde tudo, desde mascotes exóticos até fuzis AK-47, pode ser obtido com quase igual facilidade. Automóveis Mercedes Benz e BMW de último modelo, com vidros escuros, cruzam a cidade em alta velocidade, e dezenas de motos, algumas delas transportando famílias inteiras, serpenteiam através dos engarrafamentos do trânsito. Na “Calle de los Cigarrilleros”, como alguns batizaram uma das artérias da cidade, caixas de “Eight”, “TE”, “Rodeo” e “Calvert”, as marcas favoritas dos contrabandistas, são empilhadas ao longo da calçada. “Nossas mãos estão atadas”, diz Rosetti, quem tem dirigido vários confiscos de cigarros nos últimos meses, apenas para ver o quão rápido juízes e funcionários de aduanas devolvem as cargas aos traficantes.
CDE
Ciudad del Este.
Funcionários do governo norte-americano qualificam o Paraguai como um “centro principal” de lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas, armas e cigarros na América do Sul. Ciudad del Este é o coração deste negócio. As produtoras de tabaco frequentemente estão vinculadas a casas de câmbio, onde se lava o dinheiro do contrabando, segundo ex-empresários tabagistas e expedientes judiciais. Tão impenetrável é o sistema financeiro de Ciudad del Este que agentes norte-americanos que se infiltraram na organização de Roque Silveira não puderam encontrar o dinheiro que eles mesmos ajudaram a lavar. “Tratamos de seguir o dinheiro”, disse o fiscal James Warwick, quem trabalhou no caso. “Conseguimos? Não”.
Vários produtores de tabaco paraguaios têm levantado fábricas em Ciudad del Este e na próxima Hernandarias. Dali, durante anos, os cigarros são contrabandeados ao Brasil em furgões, caminhões e até mesmo ônibus através da Ponte da Amizade, que une Ciudad del Este com seu homólogo brasileiro, a cidade de Foz do Iguaçu. O Brasil intensificou os controles de fronteira em 2005, de modo que os contrabandistas mudaram das estradas para a água. A partir do entardecer, lanchas motorizadas partem de qualquer um dos 300 cais improvisados ao longo da periferia do lago Itaipu, formado por uma das maiores represas do mundo, construída sobre o rio Paraná. Para chegar a algum destes portos clandestinos, deve-se transitar por estreitos e tortuosos caminhos de terra através de densos bosques. Em uma tarde de março, repórteres do ICIJ que visitaram Puerto Codorso encontraram maquinarias do governo paraguaio arrumando o caminho dos contrabandistas. O porto parecia abandonado. Segundo contaram pessoas do lugar, os contrabandistas haviam deixado o dia livre para velar um dos seus, um ex-policial, que havia falecido em um acidente de automóvel no dia anterior.
“Fechamos um porto e abrem mais dois no dia seguinte”, diz Gilberto Tragancin, chefe de Aduanas do Brasil em Foz do Iguaçu. Com um litoral de mais de 1.500 quilômetros, o Lago Itaipu é quase impossível de ser patrulhado em sua totalidade, explica Tragancin. A poucos metros do escritório do chefe de Aduanas, uma máquina de triturar cigarros está em plena ação. A máquina pulveriza a cada dia cerca de 500.000 pacotes de cigarros expropriados: os restos são utilizados como fertilizantes e na construção de estradas.
O fluxo de contrabando do Paraguai ao Brasil é de 20 a 30 bilhões de cigarros anuais, estimam os especialistas. Em contraste, diz Tragancin, as exportações legais de cigarros paraguaios ao Brasil são nulas.
Além da ameaça que significa para a saúde pública, o contrabando de cigarros fortalece grupos do crime organizado que operam ao longo da fronteira com o Brasil. Tragancin diz que estes grupos estão utilizando os canais do contrabando de cigarros para abastecer de armas e munições algumas das facções criminosas mais violentas desse país, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o primeiro bando delitivo das prisões de São Paulo.
DO PARAGUAI AO MUNDO
Os traficantes internacionais rapidamente detectaram uma oportunidade no florescente comércio ilícito de cigarros do Paraguai. O atacadista Stormmy Paul, um índio da tribo Tulalip, do estado de Washington, nos Estados Unidos, viajou ao Paraguai em 2003 para fazer negócios. Paul estava comprando cigarros chineses, inclusive Marlboros falsificados, e revendendo-os livres de impostos a lojas de tabaco em seu estado, mas queria uma melhor combinação de preço e qualidade. Um sócio do Brasil lhe ofereceu contatos ao sul da fronteira.
Stormmy Paul
Índio Tulalip, Stormmy Paul.
No Paraguai, Paul visitou um punhado de produtores de tabaco, mas uma fábrica se destacou de imediato: a fortemente custodiada Tabacalera Central, nos arredores de Assunção. Os visitantes foram recebidos pelo dono, Roque Silveira, quem os saudou com um churrasco. Ao término do jantar, o trato foi selado. Paul pagaria 2 dólares por cada maço de cigarro fabricado por Silveira, mais um adicional de 2 dólares por maço para um intermediário em Maryland, que adulteraria os formulários aduaneiros para driblar controles e impostos nos Estados Unidos. O acordo deixava a Paul um ganho de 2 dólares por maço.
“O Paraguai me encantou”, disse Paul, um loquaz homem de negócios que a cada semana dirige uma cerimônia de antigos rituais indígenas em sua tribo, localizada ao norte da cidade de Seattle. Paul se lembra de Silveira como “um empresário muito astuto… com certa classe”. “Roque ostenta êxito”, acrescenta.
A partir de fins de 2003, um bando de 11 pessoas, em sua maioria comerciantes norte-americanos de tabaco, contrabandeou aos Estados Unidos mais de 120 milhões de cigarros paraguaios. O grupo logo os distribuía em várias cidades do país, desde a Califórnia até a Carolina do Norte, de acordo com documentos judiciais. O bando caiu em abril de 2005, enquanto os contrabandistas se reuniam em Las Vegas. A justiça norte-americana os acusou de conspiração, contrabando, tráfico e lavagem de dinheiro, entre outros crimes. Silveira passou dois meses na prisão depois de ser detido no aeroporto de Miami, mas o brasileiro se ofereceu a cooperar com as autoridades e finalmente foi condenado a sentença probatória.
Silveira pagou uma multa e, para surpresa dos paraguaios, ficou em liberdade.
RIO DA MORTE
Quase ao mesmo tempo em que os norte-americanos deram a Silveira uma palmada na mão por seus crimes, a justiça brasileira o processou em um dos maiores operativos anticontrabando da história do país. A chamada Operação Bola de Fogo terminou com a prisão de mais de 90 pessoas em 11 estados brasileiros. De acordo com documentos judiciais, Silveira supostamente controlava três diferentes redes criminosas que contrabandeavam cigarros ao populoso estado do Rio Grande do Sul.
Cigarrillos
Neste caso, Silveira conseguiu evitar a lei simplesmente permanecendo no Paraguai, onde, segundo os fiscais brasileiros, tem “uma vasta rede de contatos e suficiente capacidade financeira para viver na clandestinidade”.
Silveira havia se transformado em cabeça do tráfico de cigarros do Paraguai ao Brasil depois da detenção, em 2003, do lendário contrabandista Roberto Eleuterio “Lobão” da Silva, segundo a polícia brasileira. A partir desse momento, na linguagem do contrabando, Silveira se “assenhorou” das rotas que conduzem a milhões de fumantes nas maiores cidades do Brasil.
Duas semanas depois da Operação Bola de Fogo, um aduaneiro brasileiro foi assassinado em uma desolada região da fronteira, chamada Rio da Morte. Uma chamada anônima à polícia local reportou uma camionete queimada na rota. O cadáver carbonizado no assento do acompanhante não pôde ser imediatamente identificado pela polícia: haviam queimado o homem vivo. Os peritos forenses finalmente disseram que se tratava de Carlos Renato Zamo, um residente de Mundo Novo, ao norte de Guaíra. Zamo era um dos milhares de agentes aduaneiros que trabalhavam nas fronteiras porosas do Brasil. Mas, através dos anos, Zamo havia acumulado uma fortuna incomum para um empregado do governo. O agente tinha investimentos em São Paulo e no Mato Grosso do Sul. Era dono até de um avião.
A polícia brasileira descobriu que Zamo trabalhava para Silveira e outros contrabandistas, que supostamente pagavam 8.000 dólares mensais para que suas cargas passassem pelos controles de fronteira sem problemas. Mas Zamo havia começado a temer que o descobrissem e decidiu se retirar do negócio, segundo a polícia. Em uma reunião, os contrabandistas supostamente o haviam oferecido incrementar os pagamentos, mas Zamo recusou a oferta e deu aviso a seus colegas sobre os carregamentos do grupo.
Eventualmente, quatro pessoas foram detidas em conexão com o assassinato de Zamo, mas não Silveira, que estava foragido no Paraguai. No dia em que se anunciaram as detenções, a polícia brasileira descreveu Silveira como “o grande cabeça” do contrabando na região. “Tudo ocorre sob suas ordens”, disseram os funcionários.
Através de sua advogada em Assunção, Silveira não aceitou responder as perguntas apresentadas pelo ICIJ.
OS PAIS DA CRIATURA
Os fabricantes paraguaios de cigarros se apressam em pontuar que eles somente estão preenchendo um espaço no mercado criado pelas grandes companhias multinacionais de tabaco. Nos anos noventa, a British American Tobacco e a Philip Morris usaram o Paraguai para triangular cigarros e evadir impostos. O esquema funcionava assim: as subsidiárias da BAT e da Philip Morris no Brasil e na Argentina exportavam legalmente bilhões de cigarros ao Paraguai. Os cigarros eram imediatamente reintroduzidos como contrabando a esses dois países e vendidos livres de impostos no mercado negro.
Esta prática terminou em 1999, quando o governo brasileiro elevou drasticamente os impostos às exportações para desalentar o comércio ilegal. A partir desse momento, dezenas de fábricas de cigarros abriram suas portas no Paraguai, muitas delas propriedade de cidadãos brasileiros. Em três anos, o Paraguai chegou a ter mais de 30 produtoras de tabaco, algumas das quais falsificavam conhecidas marcas internacionais.
O negócio local de falsificação caiu marcadamente em anos recentes, logo após os fabricantes se darem conta de que havia um mercado – no Brasil e em outros países – para as marcas baratas paraguaias. Hoje, o número de fábricas se reduziu em mais da metade, mas não a produção.
Tabesa
Tabacalera del Este.
A Tabacalera del Este (Tabesa) é a principal fábrica de cigarros do Paraguai, uma moderna planta de 17.000 metros quadrados, com uma capacidade de produção de 1,5 bilhões de cigarros por mês – ou 579 cigarros por segundo. A fábrica, localizada na cidade de Hernandarias, supre quase a metade do mercado paraguaio com suas duas marcas insígnias, Kentucky e Palermo. Mas, ao mesmo tempo em que serve um mercado legítimo, a companhia supostamente provê grandes quantidades de cigarros que terminam contrabandeados ao Brasil e à Argentina. Funcionários aduaneiros nesses dois países disseram ao ICIJ que, diariamente, apreendem mais cigarros de contrabando de Tabesa do que de qualquer outra companhia. Em 2006, a Tabesa foi mencionada na Operação Bola de Fogo entre as empresas paraguaias cujos cigarros eram supostamente contrabandeados ao Brasil.
O empresário paraguaio Horacio Manuel Cartes está registrado como principal acionista e diretor da Tabesa no Informconf, uma base de dados de negócios do Paraguai. Cartes começou distribuindo cigarros duas décadas atrás e, desde então, já construiu um império, que inclui um banco, um clube de futebol e vários empreendimentos agrícolas – alguns destes negócios registrados em nome de familiares e sócios.
José Ortiz, gerente geral da Tabesa, falou com repórteres do ICIJ sobre os negócios da companhia.
“Nós não sabemos onde são consumidos nossos cigarros, e não é nosso problema”, disse Ortiz quando perguntado sobre a presença de cigarros da Tabesa no Brasil e na Argentina, dois mercados aos quais a companhia não exporta legalmente. “Nós vendemos nossos produtos no Paraguai e pagamos impostos internos”, acrescentou, sentado em seu escritório na planta da Tabesa. “O que ocorre, uma vez que os cigarros saem da fábrica não é de responsabilidade da empresa”, disse Ortiz, uma visão compartilhada por outros fabricantes paraguaios. “Meu trabalho é prover ao mercado”.
Ortiz disse que a Tabesa não vende diretamente aos varejistas, mas a quatro ou cinco distribuidores atacadistas. O empresário nomeou duas firmas atacadistas, uma das quais, Tabacos del Paraguay, está afiliada à Tabesa. “Das demais, não me recordo”, disse, reclinando-se em sua poltrona de coro negro e desviando o tema às companhias multinacionais de tabaco. “Eles são os pais e os avós da criatura”, disse Ortiz, referindo-se ao caso de contrabando da BAT e da Philip Morris nos anos noventa. “Nós estamos suprindo o mercado que eles abandonaram”.
No ano passado, a Tabesa entrou no mercado dos Estados Unidos com sua marca Palermo e está agora certificada para vender em pelo menos oito estados, incluindo Maryland e Califórnia. A Palermo está também disponível online, através de sites que vendem cigarros a partir de reservas indígenas em Nova Iorque, mas Ortiz negou que a Tabesa esteja provendo a terras indígenas diretamente. Funcionários dos Estados Unidos identificaram as reservas de Nova Iorque como grandes centros de contrabando de cigarros.
GUAÍRA: TERRA DE NINGUÉM
Fiscais e policiais brasileiros colocam as fábricas paraguaias no topo da “organização criminosa”, que, segundo eles, maneja o contrabando de cigarros na região. Érico Saconato, chefe da polícia federal brasileira em Guaíra, disse que as fábricas trabalham de mãos dadas com “gerentes” de ambos os lados da fronteira, que adquirem caminhões e embarcações, subornam funcionários públicos e contratam quadrilhas de jovens, pescadores e agricultores para transportar cargas de cigarros. Em um dos casos que envolvem Roque Silveira, fiscais brasileiros disseram em documentos judiciais que o bando adquiriu grandes quantidades de cigarros de contrabando “diretamente das fábricas paraguaias” para sua distribuição no Rio Grande do Sul e cidades fronteiriças da Argentina.
Rio Paraná
Rio Paraná.
“Todos os contrabandistas, grandes traficantes, nesta região são empresários e políticos, que têm bons advogados, automóveis luxuosos, família”, diz Saconato. “Alguns, inclusive, são líderes de igrejas evangélicas”.
A cidade natal de Roque Silveira, Guaíra, ganhou proeminência no comércio de cigarros quando os controles foram incrementados na Tríplice Fronteira, a partir de 2005. Hoje, grande parte da população, dizem funcionários da cidade, depende do contrabando para viver. Alguns alugam espaços em suas casas para que os contrabandistas armazenem suas cargas, outros trabalham como alertadores ou passam cigarros através do rio Paraná. Os “passadores” ganham por volta de 300 dólares por semana, um salário mensal mínimo e médio no Brasil.
A polícia em Guaíra diz que se sente oprimida. Segundo Saconato, 700 pessoas foram presas em 2007 em conexão com o contrabando, mas somente dois homens foram condenados. Quando o fiscal do distrito fechou um bar à beira do rio, Tininha, que alegava-se ser usado pelos contrabandistas para planejar seus negócios, um fiscal federal reverteu a ordem e instaurou uma ação contra a cidade. Nessa noite, os contrabandistas celebraram lançando fogos de artifício das margens do rio, dizem funcionários locais.
“Guaíra está praticamente abandonada”, lamenta Saconato, que antecipa um recorde de apreensões de cigarros para este ano (2009) devido à crise financeira global e a uma recente subida nos impostos sobre o tabaco no Brasil. Nos quiosques de São Paulo e Rio de Janeiro, o maço mais barato de cigarros brasileiros (por volta de 1,5 dólares) custa três vezes mais que as marcas paraguaias de contrabando.
“UM GRANDE NEGÓCIO”
Nenhum policial em Guaíra viu Silveira em anos recentes, diz Saconato. “O Chefe”, seu apelido, se converteu em um mito. Habitantes asseguram de tempos em tempos tê-lo visto. Seu caso em 1996 por homicídio está ainda vagando nas cortes de Guaíra. Logo após a Operação Bola de Fogo, Silveira se converteu em um fantasma, diz a polícia brasileira, mas ninguém crê que ele tenha se retirado do negócio de cigarros. Alguns de seus ex-sócios agora manejam grandes porções do contrabando a ambos os lados da fronteira, de acordo com a polícia brasileira.
As últimas pistas de Silveira nas cortes do Paraguai datam de julho de 2007, quando o brasileiro ganhou outra luta da justiça. Naquela ocasião, a Corte Suprema do Paraguai denegou um pedido de extradição de fiscais brasileiros, que o acusavam de associação ilícita, contrabando de cigarros e lavagem de dinheiro.
A simples menção do nome de Silveira em círculos do tabaco no Paraguai faz os entrevistados franzirem a testa e pigarrearem repetidamente antes de oferecer um anódino “seu nome me soa familiar”, ou “ele não tinha uma fábrica de cigarros por aqui?”.
Um homem em Salto del Guairá, a cidade paraguaia de frente a Guaíra, não titubeia ao falar de Silveira. Sidronio Talavera, um harpista profissional que algumas vezes tocou com uma das bandas de bolero mais famosas do Paraguai, nos recebe sentado em um pequeno escritório, de onde dirige sua fábrica de cigarros, Cosmopolita S.A.. Talavera diz que não apenas conhece Silveira, mas que também é seu sócio comercial. “É uma das melhores pessoas que já conheci em toda a minha vida”, enfatiza Talavera, que foi condenado no ano passado por evasão fiscal. Fiscais paraguaios acusaram Talavera de reportar falsas exportações ao Brasil para evadir o pagamento de impostos para a importação de insumos para fabricar cigarros. As autoridades também o apontaram como falsificador, acusação que ele nega.
Sidronio Talavera
Sidronio Talavera.
Talavera diz que vende a qualquer pessoa que bate à porta de sua fábrica, e sabe que alguns de seus compradores são contrabandistas ou trabalham com contrabandistas. “É uma boa coisa que os cigarros vão ao Brasil”, diz, batendo em sua escrivaninha. “Se fico com muitas exigências, morro de fome”. Talavera vangloria-se de que sua marca Latino já tenha sido vendida até mesmo em Dubai. Diz ainda que atacadistas do Panamá compram cigarros dele e revendem ao exterior. “Não sei se no Panamá os cigarros entram ao contrabando ou são revendidos legalmente, e isso não me interessa. Interessa-me que eu venda”, acrescenta.
De Silveira, Talavera diz que ainda é o grande intermediário do negócio, o mediador que adquire grandes quantidades de cigarros das fábricas paraguaias e coordena sua distribuição no Brasil. “Ele trabalha com todos!”, diz Talavera, quando mencionado a ele que outros fabricantes parecem desconhecer nestes dias o paradeiro de Silveira. “É inteligente, o mafioso. Escapou dos americanos”, acrescenta.
Do jeito que estão as coisas, os desafios para o governo paraguaio, que diz estar decidido a regular a indústria do cigarro, não são poucos.
Ortiz, o gerente da Tabesa, resumiu o problema melhor que ninguém: “O Paraguai é um grande duty free”, disse o empresário. “E é um boníssimo negócio”.
Daniel Santoro colaborou nesta investigação.
Fonte: ICIJ (The International Consortium of Investigative Journalists). Texto de Marina Walker Guevara, Mabel Rehnfeldt e Marcelo Soares, 29 de junho de 2009. Tradução Livre.

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